terça-feira, 5 de janeiro de 2010

prendas de Natal II - Rosa Maria

A cozinheira das cozinheiras não é um livro de receitas comum. É um livro tipo, diria até típico, com receitas e tabelas que interessam a quem gosta de cozinha. Mas mais importante, é um livro marcante a nível cultural e antropológico, porque se dirige às "donas de casa" e porque tem uma marca única de autoria, não culinária mas moral. Não é à toa que está à venda na loja A Vida Portuguesa. Não é apenas o design retro que está em causa, mas a mentalidade retro.
Adorei esta prenda, refira-se. Porque me dá boas receitas, ao mesmo tempo que me garante excelentes momentos de humor.
Segundo a Bertrand, a primeira edição é de de 1998, mas isso não faz qualquer sentido. Não pode fazer, porque não quero acreditar que há 12 anos ainda se escrevia assim, embora se pudesse ainda pensar. A edição que tenho neste momento é a 32ª, o que faz da obra um verdadeiro best-seller.
Rosa Maria, a nossa guia pela cozinha das cozinhas, abre o seu livro com um elucidativo prefácio, entitulado "Às senhoras que dirigem a vida do lar". Lemos atentamente.
"Minhas Senhoras:
Ao apresentar uma série de receitas da arte de cozinhar e de fazer doces, tive a preocupação de somente pôr neste livro receitas práticas, facilitando às donas de casa a direcção mais importante do 'ménage', a alimentação."
Assim se inicia, com o primor dos primores, a obra das obras, com a autora das autoras, enfim A cozinheira das cozinheiras.
Prontos para a ménage?
Rosa Maria é a mais bem intencionada das senhoras que se dirigem às senhoras do lar. Há uma preocupação e ternura pela alimentação da família, que comove os leitores, abrindo-lhes o apetite. Continuemos pela leitura. Quando fala da alimentação das pessoas adultas, Rosa Maria faz uma distinção fundamental da nossa sociedade, e que deve evidentemente reflectir-se na alimentação: o labor da cidade e o labor do campo. Pois, como nos explica, a vida da mulher da cidade é "menos laboriosa do que a da mulher que trabalha no campo" e "não lhe dá grandes perdas de forças" - logo, deve "adoptar um regímen mais vegetal". Mas, atenção, Rosa Maria não anda distraída e recomenda que não se abuse desse regímen (???) "de um modo tão irracional como se está vendo frequentemente, e que tem sido a origem de inúmeros casos de anemias e de outras enfermidades gravíssimas." A autora das autoras adora superlativos, é uma cozinheiríssima.
Atentos, ou melhor atentas (como boas senhoras do lar), prosseguimos e, mais à frente, descobrimos o verdadeiro inimigo de Rosa Maria: as Bebidas Brancas. É certo que já tinha embirrado com o vinho, dizendo "Do abuso do vinho têm resultado terríveis enfermidades, como o delirium tremens, a loucura, doenças do fígado, etc., e não menor número de desordens e desgraças de ordem moral, que têm levado muitos homens ao degredo, à penitenciária e ao patíbulo." A mulher tem toda a razão, mas atentem a linguagem - que beleza, quantos de nós usam a palavra patíbulo? Talvez seja porque não há por cá pena de morte, mas adiante. Nada disto se compara ao repúdio pelas bebidas brancas, pois que, no caso do vinho, uma pinga até faz bem "unicamente à hora das refeições". Neste caso terei de transcrever todo o trecho, porque é pungente.
"Se o vinho, bebido em condenável excesso, pode e tem produzido frutos desgraçados de ordem física e moral, as bebidas brancas, por seu turno, têm dado aos hospitais, aos cemitérios e às prisões um contingente horroroso.
A bebida branca, inimiga implacável da economia animal [o que raio quer ela dizer?], é, contudo, às vezes proveitosa: - no mar, por exemplo, ou depois de um aguaceiro em que o vestuário não pode ser imediatamente substituído; mas toda a bebida redundará em prejuízo, quando o uso que dela se fizer for imoderado.
Repetimos: a bebida branca é um veneno, que todos os homens de dignidade devem repelir, pois que o uso desmedido dela serve apenas para enriquecer os hospitais de doidos, os obituários e as prisões."
Depois disso quem se atreverá a beber uma gota mais de gin tónico? Eu teria medo, não fosse dar-se o caso de não gostar de bebidas brancas.
A cozinheira das cozinheiras é o presente dos presentes, o superlativo absoluto que une história das mentalidades à arte de bem comer. Uma boa mesa pode não fazer um bom lar, mas ajuda à boa vida.



4 comentários:

joana disse...

...à boa vida e à decência moral, eheheh! e eu a pensar tornar-me vegetariana em 2010... livra!

ana vicente disse...

jesus credo!

Sandera disse...

"... a bebida branca é um veneno, que todos os homens de dignidade devem repelir, pois que o uso desmedido dela serve apenas para enriquecer os hospitais de doidos, os obituários e as prisões"

Ufa é que eu, bebo gins tónicos muito dignamente. Pareço uma rainha aliás!

Helena disse...

Boa noite, estava aqui a ver se sabia, o ano ao certo em que foi publicado pela 1ª vez este livro, e encontrei esta pag. pois bem nunca poderia ser em 1998 a primeira edição, porque eu recebi de presente em Agosto de 2010 e quem mo ofereceu je tem um igual desde que casou ha cerca de 53 anos.Tambem encontrei a 4ª edição que foi em 1940,deixo aqui o link http://catalogolx.cm-lisboa.pt/ipac20/ipac.jsp?session=128A8F555670P.333458&profile=rbml&uri=link=3100027~!1388711~!3100024~!3100022&aspect=basic_search&menu=search&ri=1&source=~!rbml&term=A+cozinheira+das+cozinheiras&index=ALTITLE#focus