terça-feira, 30 de março de 2010

Mostrar vs. Espreitar

É já amanhã que inaugura a exposição "Coisas que que me entram pelos olhos adentro", organizada pelo projecto Bem-me-quero, da SEIES, no âmbito do Março Mulher, e sobre a qual já vos falei aqui.
Entretanto, tive acesso a algumas fotografias das molduras, antevendo aquilo que poderá ser a exposição. E, a partir delas, surgiram-me algumas reflexões, que vos deixo agora. Talvez sejam mais dúvidas para apontar um caminho possível.
Quando as vi, deparei-me de imediato com várias. Quanto de nós cabe numa moldura? Como tornar a identidade visível e percepcionada? Num certo sentido, esta é uma pergunta com que o espectador se poderá confrontar: como seria a minha moldura? Logo, como seria a minha identidade visível, o meu eu escondido revelado ou o meu eu conhecido exacerbado? Aquilo que queremos mostrar aos outros nem sempre pode ter esse carácter de construído. E nessa moldura cabe o construído que quero ser, o que quero que vejam ou o que sou realmente? Nestas dúvidas, compreendo que as fronteiras são invisíveis, que não há paredes estanques, nem divisórias entre eus vividos, eus sonhados e eus pensados. Que tudo é eu, mesmo aquilo que não conheço, principalmente o que não conheço, diriam alguns.
Enquanto isso, olhei cada uma das fotos em busca do significado de cada uma, esperando alcançar o eu de outra pessoa, através do seu olhar. Na verdade, perante as molduras, resta-nos espreitar. Espreitar fisicamente, ostensivamente, como não podemos espreitar ninguém, a vida de ninguém.
Neste duplo movimento de hipotética autora e hipotética espectadora, dei-me conta desta acção constante de nós com os outros. Aquilo que mostramos, aquilo que espreitamos - aquilo que se deixa espreitar e aqui que é inevitável que espreitemos. Na vida principalmente. A grande construção social da relação com os outros, da relação connosco próprios, de todas estas identidades que se misturam de uma forma tão pouco, ou tão muito, "emoldurável".
Escrevo este texto, perdendo-me um pouco em considerações vagas e teóricas, mas pensando sobretudo nestas molduras (que são vidas que nunca conhecerei) e em vidas (que são molduras que nunca conheceremos).
Resta espreitar com cuidado.

quinta-feira, 11 de março de 2010

um livro viagem

Quando me falavam de literatura de viagem, não percebia muito bem. Um género indistinto para o meu olhar, ainda ignorante sobre essas coisas. Por agora, continua ignorante. Mas, agora, começo a imaginar se toda a literatura de viagem será como este livro soberbo, o Caderno Afegão, de Alexandra Lucas Coelho.


Duvido, no entanto, que seja realmente o mesmo, porque este livro é inequivocamente especial. Alexandra Lucas Coelho foi um mês para o Afeganistão em 2008 e traz-nos o seu diário de viagem de uma forma totalmente cativante. O local, obviamente, contribui para o interesse da viagem, mas é pela autora, pelo que viveu, viu e como o escreve, que ficamos agarrados.
Por onde começar? Pela coragem, sim. Acho que é a coragem do gesto, de tudo o que nos é relatado, que me impressiona em primeira mão. Uma mulher ocidental dispor-se a ir um mês para o Afeganistão, como jornalista e, portanto, com necessidade de "reportar" e andar lá pelo meio, é algo admirável. Não consigo pôr de outro modo, porque é mesmo isso que se sente ao ler o livro, o risco de cada passo. E, ao mesmo tempo (e é nesse sentido que o livro é tão bom), esse risco transforma-se em proximidade, em familiaridade, em reconhecimento.
O "lá para o meio" transforma-se muitas vezes em cenário com que empatizamos. Aquilo que ALC nos conta traz-nos um pouco do que viu para dentro de nós. As pessoas, os lugares e as atmosferas vêm para nós em sentimentos confusos. Porque ela consegue fazer algo incrível, uma excelência documental diria mesmo, que é dar-nos a vivência do lugar, garantindo a vivência dela e do seu olhar forte sobre a realidade, sem nunca se perder num enredo demasiado pessoal.
Eu estou-lhe grata por este livro. Porque me mostrou algo que nenhum jornal, tv ou rádio me poderiam dar assim. É certo que quando esteve lá, foi correspondente do Público e da Antena 1, mas este formato é ímpar. Esta é uma obra inestimável, cheia de fronteiras para reflectirmos, cheia de tiros às ideias absolutas sobre aquela parte do mundo, aquela cultura, aquela civilização. Caderno Afegão coloca-nos lá, envolve-nos, compromete-nos - não há uma resposta simples ou definitiva.
A Tinta da China (editora cada vez melhor) tem um site com as fotos desta viagem. Ainda não as vi todas, guardei-as para quando acabasse o livro. Depois de lê-lo, cada foto vale muito mais.

segunda-feira, 8 de março de 2010

hoje é o dia

O Dia Internacional da Mulher é hoje. A sociedade portuguesa continua um pouco indiferente a este dia, insistindo numa percepção desfocada da realidade e da necessidade desse dia. O preconceito pela causa feminista persiste, confundindo-se feminismo com uma ameaça letal para os homens, às donas de casa e à família tradicional. O feminismo deve ser compreendido como um movimento a favor da sociedade, em prol da igualdade de géneros, da liberdade, por uma sociedade mais justa, mais equilibrada, mais livre. A noção de que o feminismo é contra o status quo não é errada, pois a mudança é necessária - a incapacidade de reconhecermos que o mundo, no que diz respeito às mulheres, precisa de mudar impede-nos de sermos melhores. A violência, a doença, a desigualdade, o desrespeito continuam a fazer parte da condição da mulher. E não é só nos países ditos de 3ºmundo. É aqui mesmo, à porta de casa, dentro de casa. De cada vez que se luta a favor da prevenção da violência doméstica, dos cuidados de saúde, dos direitos parentais, da educação sexual, da despenalização do aborto, dos direitos de trabalho, do acesso à educação, luta-se em feminismo. A geografia social e cultural é diversificada, múltipla neste planeta, mas uma coisa existe em comum: as mulheres continuam a ser as mais prejudicadas, sob todos os domínios.
Enquanto sacudimos a capota como se não se tratasse de um problema nosso, por sermos para aqui umas privilegiadas, continuamos a esquecer-nos da questão essencial. A questão de género, a problemática do que é ser mulher, os atributos e as características associadas, os padrões de conduta, de beleza, de sociabilidade e até de empregabilidade. E essas questões não se esgotam na mulher, expandem-se para o homem, com os mesmos problemas associados, apenas com uma excepção: não são eles os mais prejudicados, os mais mortos, os mais desrespeitados. Mas esta é uma luta conjunta.
Enquanto sacudimos a capota, a sociedade capitalista ocidental tenta apropriar-se deste Dia da Mulher como se apropriou do da Mãe, do do Pai, do de São Valentim, do das Bruxas, deturpando-o para vender um estado de Mulher, adquirível em qualquer produto ou serviço. E, à medida que o conquistam com a lógica mercantilista, mais facilmente se aniquila o espírito fundador deste dia. Não há nada de mal em aproveitar o dia para homenagear as mulheres da nossa vida, mas este é um dia de luta e é importante não o esquecer - foi para isso que foi criado.
É nesse sentido que escrevo este post, para homenagear as mulheres, homenageando também a sua luta. Ser humano é uma luta, ser mulher é uma luta a dobrar. Em certos sítios é a triplicar, noutros é um pouco melhor, porque já foi uma luta maior. No início do século XX, fazia mais sentido esta luta? Pois, na América do Norte onde começou, fazia. No Afeganistão, hoje, ainda nem sequer faz. E são estes abismos que é importante sobrepor.
As nossas conquistas, enquanto ocidentais hoje, passam pela 1ªvitória ontem de uma Mulher na categoria de melhor realização nos Óscares, pela possibilidade de serem rockeiras, por condições melhores de trabalho e de maternidade. Mas esta é uma luta global, muito mais vasta, muito mais extremada, muito mais fatal, muito mais urgente do que aparenta. É por isso que se assinala o Dia, é por isso que não se pode ser indiferente.

sexta-feira, 5 de março de 2010

cada olhar, muitas coisas

Há já 17 anos que a Seies organiza o Março Mulher, uma iniciativa realizada em Setúbal em parceria com a Câmara Municipal durante o mês de Março. Composto por um conjunto de actividades, o Março Mulher assinala o Dia Internacional da Mulher, convocando o público a usufruir, durante um mês, de uma diferente vivência das questões de género. Múltipla e abrangente, esta iniciativa tem uma componente social, lúdica e cultural, dinamizando a cidade.
Este ano o tema é "Repensar Setúbal. As vidas na cidade no feminino e no masculino", convidando, como se pode ler no programa, "mulheres e homens de todas as idades a recriar formas de se viver melhor na cidade, conjugando a vida pessoal, familiar, social e profissional".




No âmbito do Março Mulher, o projecto Bem me Quero, que se centra na prevenção e desocultação da violência doméstica, irá realizar uma exposição com trabalhos de mulheres que pertencem a um grupo de desenvolvimento pessoal e social dinamizado pelo Projecto.

A mostra terá o nome de "Coisas que me entram pelos olhos adentro", o que muito me orgulha. A equipa do Bem me Quero lançou-me o desafio de participar com eles neste momento e aqui estou eu a começar.
O mote para o trabalho a desenvolver por estas mulheres é mostrar essas "coisas" que lhes entram pelos olhos adentro. Como? Através de uma moldura-caixa, em que construirão um pequeno mundo dessas suas coisas, daquilo que lhes invade o quotidiano e que funda e altera a sua posição, o seu olhar.
Este nome que nos une neste momento é, também, o reconhecimento comum dessa dimensão incontornável da importância das "coisas" e do olhar na definição de quem somos.
Eu, na verdade, mal posso esperar.
O princípio que funda esta exposição é o de que, cada olhar, cada pessoa, cada mulher possui não só um mundo único, como também pode criar um mundo único. A materialização daquilo que nos "entra adentro" é uma expressão absoluta de individualidade, de auto-conhecimento, de reconhecimento de poder de criação e mudança.
Quando reconstruímos o nosso mundo, quando o transformamos, quando o colocamos à escala, é possível ampliar a nossa própria presença, a consciência da nossa posição e a possibilidade de alterá-la.


Por agora, estou expectante. Para ver, para ir partilhando por aqui e preparando também a minha pequena contribuição para a construção destes pequenos grandes mundos.

Mais informações sobre a programação do Março Mulher, e outros eventos a decorrer em Setúbal, encontram-se aqui.

quinta-feira, 4 de março de 2010

subtil, poderoso

Na Holanda, as mulheres tiveram um grande gesto de cidadania, nas eleições autárquicas. Em protesto contra as posições do partido de extrema-direita face ao islamismo, basicamente dizem combater a "islamização da Holanda", foram votar de lenço na cabeça seguindo a tradição muçulmana (menos ortodoxa).



Esta imagem, retirada hoje do jornal oje, mostra quão impactante pode ser um gesto tão subtil, quando combinado em colectivo.
Este gesto nobre de aceitação, de abraço por uma cultura muito diferente da sua, martirizante de diferente, violenta e demolidora por vezes, mostra ao mundo, aos outros, quão singular pode ser uma cultura se for múltipla. Aqui, o problema não é o islamismo, é a extrema-direita, e daí a grande nobreza do gesto. Porque é fácil apontar tudo o que está "errado" na tradição islâmica. Mais difícil é conseguir entender que fazem parte de nós. As mulheres muçulmanas que vivem na Holanda são privilegiadas, em face daquelas que vivem no Afeganistão por exemplo. Têm limitações, por certo incomportáveis para uma mulher ocidental emancipada, mas não há uma escala absoluta de emancipação. É sempre relativa. Até a violência pode ser relativa, mesmo quando é absoluta.
Em Londres, vi mulheres muçulmanas de lenço a fumar cigarros com os seus amigos de todas as cores, vi mulheres de lenço a atender na GAP. Não me chocou, achei maravilhoso. Não me choca que uma mulher decida usar um lenço por escolha sua, mesmo que eu não entenda os pressupostos disso.
Entendo as holandesas ocidentais que usaram lenço em forma de protesto. Faria o mesmo! Por que não hei-de entender que uma mulher use lenço por qualquer coisa em que acredita?
Obviamente, o elogio aqui é mais pelo gesto ocidental do que pelo gesto muçulmano, até porque não conseguiria elogiá-lo, não faz parte de mim. O gesto ocidental de pôr o lenço na cabeça é uma manifestação da utopia que queremos. Uma utopia que vai contra a visão da extrema-direita e, com certeza, de algum do mundo islâmico. Uma utopia de liberdade, de integração, de diferença.
Ando por estes dias a ler um grande livro, Caderno afegão, da Alexandra Lucas Coelho, sobre o qual gostaria de falar quando terminasse. Coloca muitas destas questões em evidência, num mundo tão diferente, mas que é nosso também. Não é possível expulsá-lo, não é possível "ajudá-lo" numa atitude condescendente e de superioridade cultural, é necessário vivê-lo, é necessário colocar o lenço na cabeça. Para mostrar que estamos todo aqui e que o queremos.